Era uma vez um menino cheio de lágrimas. Lágrimas paradas, esquecidas num canto como a harpa coberta de pó de Bécquer. Porém em vez de esperar uma mão de neve disposta a arrancar-lhe música ... ele não esperava nada.
Nem sequer sabia esperar.
Sabia aguentar.
Resistir.
Calar-se.
Algumas tardes sentava-se na calçada olhando os carros que passavam com sua carinha séria e seu sorriso fechado, imaginando como poderia ser a vida daquelas pessoas que passavam tão rápido diante dele. Conseguia ver uns rostos que as vezes pareciam estar discutindo, crianças dormidas com as cabecinhas dobradas, mulheres chorando ou homens falando ao celular.
Na frente dele o desfile de moças lindas que pintavam os labios no semáforo e sorriam olhando-se no espelho retrovisor e moços que moviam as cabeças ao rítmo de músicas altas que saiam pelas janelinhas como pedaços de festa.
Ele perguntava-se sobre o que discutiriam essas pessoas com tanta intensidade e porquê os meninos dos carros sempre estavam dormindo. Ficava imaginando os motivos que faziam chorar estas mulheres ou que conversas importantes obrigavam os homens a falar ao telefone enquanto dirigiam.
Ficava bobo olhando as jovens imaginando como cheiravam bem, perguntando-se porquê abriam os olhos ao mesmo tempo que abriam os lábios para pintá-los. Escutava a música dos jovens e simplesmente se deixava rodear por ela nos poucos segundos que o carro levava para afastar-se dele.
Algumas tardes preferia ficar ali olhando a vida dos outros passando que viver a sua em casa com os gritos, as lágrimas da mãe, os barulhos de portas batendo e os golpes.
Um anoitecer se levantou da calçada onde estava sentado e se dispunha a começar sua caminhada de volta para casa, quando uma moto que vinha costurando entre os carros, não o viu e o atropelou.
Foi tão rápido.
Tão doloroso.
Pela primeira vez os carros não seguiram seu caminho, pararam e as pessoas dos carros desceram.
Desde o chão, onde havia tombado de boca pra cima, depois de um curto voo que lhe pareceu muito interessante porque havia visto o teto dos carros, a vista de pássaro...começou a sentir a dor.
Não podia se mover e a dor estava em todos os lados menos em seus olhos.
Seu olhar deslumbrado via como as pessoas se aproximavam dos carros.
Ninguém discutia. Uma moça bonita chorava olhando-o, os moços da música alta moviam a cabeça, diferente de como costumavam fazer, como que dizendo não. Até uns garotos acordados se amontoavam calados perto dele com os olhos muito abertos.
Homens falavam ao telefone pedindo uma ambulância.
Achou graça ao ver como todos haviam saído de seus papéis. Uma mulher se abaixou e tocou-lhe o rosto com sua mão de neve e quando seus olhares se cruzaram, e, sem querer, arrancou-lhe as notas intocadas. Este menino que vinha há tantos anos guardando suas lágrimas sentiu que elas vinham todas de um só golpe.
Conseguiu buscar com sua mãozinha a mão da mulher e sem tirar os olhos dela lhe pediu com o pensamento que ela o apertasse para sentir algo bom em meio a tanta dor. Ela entendeu perfeitamente e sem tirar o olhar deixou que a mão cheia de sangue do menino se deslizasse escorregando na sua e a apertou enquanto sorria desistindo de buscar as palavras adequadas. Ele tampouco tinha nada a dizer e quando terminaram-lhe as lágrimas abriu um sorriso.
Faltavam alguns dentes, porém ainda assim era um lindo sorriso.
E assim morreu.
Feliz.
Rodeado de seus amigos, as pessoas dos carros.
Isabel Salas
Do livro @O canário e a máquina de costurar